As Dores da Alma
Francisco do Espírito Santo Neto
Pelo espírito Hammed
De todas as violências que padecemos, as que fazemos contra nós
mesmos são as que mais nos fazem sofrer. Nessa crueldade, não se derrama
sangue, somente se constroem cercas e cercas, que passam a nos sufocar e a nos
afligir por dentro.
Montaigne, célebre filósofo francês do século XVI, escreveu: “A
covardia é mãe da crueldade”. Realmente, é assim que se inicia nossa
autoagressão. Em razão de nossa fragilidade interior e de nossos sentimentos de
inferioridade, aparece o temor, que nos impede de expressar nossas mais íntimas
convicções, dificultando-nos falar, pensar e agir com espontaneidade ou
descontração.
A autocrueldade é, sem dúvida, a mais dissimulada de todas as
opressões. Além de vir adornada de fictícias virtudes, recebe também os
aplausos e as considerações de muitas pessoas, mas, mesmo assim, continua
delimitando e esmagando brutalmente. Essa atmosfera virtuosa que envolve os que
buscam ser sempre admirados e aceitos deve-se ao papel que representam incessantemente
de satisfazer e de contentar a todos, em quaisquer circunstâncias. Buscam
contínuos elogios, colecionando reverências e sorrisos forçados, mas pagam por
isso um preço muito alto: vivem distantes de si mesmos.
A causa básica do “autotormento” consiste em algo muito simples:
viver a própria vida nos termos estabelecidos pela aprovação alheia.
A timidez pode ser considerada uma autocrueldade. O acanhado
vigia-se e, ao mesmo tempo, vigia os outros, vivendo numa autoprisão. Em razão
de ser aceito por todos, ele não defende sua vontade, mas sim a vontade das
pessoas. Pensa que há algo de errado com ele, não desenvolve a autoconfiança e,
continuamente, se esconde por inibição.
Pensar e agir, defendendo nosso íntimo e nossos direitos inatos e,
definindo nossas perspectivas pessoais, sem subtrair os direitos dos outros, é
a imunização contra a autocrueldade.
Para vivermos bem com nós mesmos, é preciso estabelecermos padrões
de autorrespeito, aprendendo a dizer “não sei”, “não compreendo”, “não
concordo” e “não me importo”.
As criaturas que procuram bajulação e exaltação martirizam-se para
não cometer erros, pois a censura, a depreciação e a desestima é o que mais as
atemorizam. Esquecem-se de que os erros são significativas formas de
aprendizagem das coisas. É muito compreensível faltarmos à lógica numa tomada
de decisão, ou mudamos de ideia no meio do caminho; no entanto, quando errarmos,
será preciso que assumamos a responsabilidade pelos nossos desencontros e
desacertos e apreendamos o ensinamento da lição vivenciada.
Quem busca consenso, crédito e popularidade não julga seus
comportamentos por si mesmo, mas procura, ansiosamente, as palmas dos outros,
oferecendo inúmeras razões para que suas atitudes sejam totalmente
consideradas.
Vivendo e seguindo seus próprios passos, poderá inicialmente
encontrar dificuldades momentâneas, mas, com o tempo, será recompensado com um
enorme bem-estar e uma integral segurança de alma.
Estar alheio ou sair de si mesmo, na ânsia de ser amado por todos
aqueles que considera modelos importantes, será uma meta alienada e
inatingível. O único modo de alcançar a felicidade é viver, particularmente, a
própria vida.
A fixação que temos de olhar o que os outros acham ou acreditam,
sem possuirmos a real consciência do que queremos, podemos, sentimos, pensamos
e almejamos, é o que promove a destruição em nossa vida interior, ou seja, o
esfacelamento da própria unidade como seres humanos e, por consequência, nossa
unidade com a vida que está em tudo e em todos.
Consulta Kardec os Obreiros do Bem: “A obrigação de respeitar os
direitos alheios tira ao homem o de pertencer-se a si mesmo?” E eles
responderam: “De modo algum, porquanto este é um direito que lhe vem da
Natureza.” ([1])
“Pertencer-se a si mesmo”, conforme nos asseveram os Espíritos, é
exercer a liberdade de não precisar conciliar as opiniões dos homens e de
livrar-se das amarras da tirania social, da escravidão do convencionalismo
religioso, das vulgaridades do consumismo, da constrição de ser dependente,
enfim, do medo do que dirão os outros.
A solução para a autocrueldade será a nossa tomada de consciência
de que temos a liberdade por “direito que vem da Natureza”. Contudo, de quase
nada nos servirá a liberdade exterior, se não cultivarmos uma autonomia
interior, porque quem está internamente entre grilhões e amarras jamais poderá
pensar e agir livremente.
Cada ato de agressividade que ocorre neste
mundo tem como origem básica uma criatura que ainda não aprendeu a amar.
A crueldade, como pena de morte, já se achava estabelecida em
quase todos os povos da Antiguidade. Em Atenas, dava-se ao sentenciado à morte
opções de escolha: o estrangulamento, que era considerado por todos humilhante;
o corte de cabeça através do cutelo, o que era muito doloroso; e o
envenenamento, o preferido pela maioria dos condenados.
Na Roma Antiga, em época anterior a Júlio César, o enforcamento e
a decapitação eram as sentenças mais generalizadas. Porém, ao homicida de pais
e irmãos era aplicada uma pena invulgar: ser cozido vivo e depois atirado ao
mar. A condenação dos incendiários eram as chamas da fogueira. Os hebreus
preferiam o apedrejamento, ou a decapitação, pois atribuíam estar na cabeça a
localização dos delitos. Na China, havia um processo de deixar cair gotas
d'água na testa do condenado, sempre no mesmo lugar, até conduzi-lo à completa
loucura. No Japão, os sentenciados à morte tinham a permissão dos juízes para
rasgar o próprio ventre com o sabre.
Impossível descrever aqui, nestas rápidas reflexões, os atos
terríveis de personalidades da história da humanidade, ou analisar sua natureza
primitiva e rudimentar, inata nas almas em seus primeiros passos de ascensão
espiritual. Nomearemos apenas algumas criaturas que tiveram comportamentos
degenerados; como Nero, Calígula, Caracala, Gêngis-Cã, Ivã – o Terrível, Tamerlão,
e outras, sem nos determos nas atitudes dessas figuras do passado ou do
presente, nem nas incontáveis condutas cruéis de homens que passaram
anonimamente pela Terra. Todavia, não poderíamos deixar de registrar o
fanatismo e o autoritarismo da “Santa Inquisição” — também conhecida como o
“Santo Ofício”, criada em 1233 pelo papa Gregório IX —, que entrou para a
História como uma das mais brutais demonstrações de ferocidade e violência
contra os direitos humanos.
Não saberemos avaliar com precisão quais os atos mais perversos e
sanguinários: os realizados pelos executores, ou os praticados pelos
executados. Aliás, pessoas lutam e matam até hoje “em nome de Deus”, para
justificar e proteger suas crenças religiosas.
A atrocidade, o sadismo, a perversidade e a desumanidade são
características provenientes da insensibilidade ou enrijecimento da psique
humana, em processo inicial de desenvolvimento espiritual. A Espiritualidade,
na terceira parte, capítulo VI, de “O Livro dos Espíritos”, expõe: “(...) o
senso moral existe, como princípio, em todos os homens (...) dos seres cruéis
fará mais tarde seres bons e humanos (...)” ([2])
As faculdades do homem estão em estado latente, “como o princípio
do perfume no germe da flor; que ainda não desabrochou”, assim, também, em
essência somos todos unos com a Perfeição Divina que habita em nós.
Todo processo de aprendizagem resulta em uma expansão da
consciência, o que nos possibilita, gradativamente, abandonar os gestos
bárbaros. Quando a criatura integrar na sua mentalidade o senso moral, que nela
reside em estado embrionário, converterá os atos agressivos em atitudes
sensatas e humanas.
Um traço comum em toda a Natureza é a evolução. Evoluir é o grande
objetivo da Vida, pois, quanto mais progredimos, mais resolveremos nossos
problemas com harmonia e sensatez. A maioria dos indivíduos se comporta como se
os problemas existissem por “si sós” e exige que o mundo exterior os resolva.
Mas as dificuldades não existem fora, e sim dentro de nós mesmos. Nesse caso,
quanto mais percebemos essa realidade, mais aprenderemos como solucioná-los sem
brutalidade.
Cada ato de agressividade que ocorre neste mundo tem como origem
básica uma criatura que ainda não aprendeu a amar. Naturalmente, todos nós
ficamos indignados com a rudeza ou a maldade, mas devemos entender que isso é
um processo natural da humanidade em amadurecimento e crescimento espirituais.
Por trás de todo ato de crueldade, sempre existe um pedido de
socorro. Precisamos escutar esse apelo inarticulado e dissolver a violência com
nossos gestos de amor.
Os atos e a vida do Cristo apresentam, sob muitos aspectos, sempre
algo de novo a ser interpretado em seu significado mais profundo. A História da
humanidade nunca registrou nem registrará fato tão cruel e violento na vida de
um ser humano como aquele ocorrido há quase dois mil anos.
Os judeus tinham, nas redondezas de Jerusalém, uma colina que se
destinava à execução dos condenados da época.
Era um terreno de acentuado declive, aspecto pesado e sombrio,
onde crucificavam assassinos e ladrões. Os gregos deram-lhe o nome de Gólgota,
do hebraico “gulgoleth” (“crânio”), os romanos chamavam de Calvário, do latim
“calvarium” (“lugar das caveiras”). Esse sítio tinha uma formação rochosa que
se assemelhava a uma caveira, além de nele se encontrarem, por todos os lados,
crânios em decomposição, expostos ao tempo.
Nesse tétrico lugar, um ser extraordinário, que queria
simplesmente despertar nos homens sua “dimensão esquecida”, ou ligar esse “elo
perdido” ao Poder da Vida, foi crucificado penosamente.
“E, quando chegaram a um lugar chamado a Caveira, ali o
crucificaram, juntamente com dois malfeitores, um à direita e outro à esquerda.
Mesmo diante do sofrimento, Jesus dizia: Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o
que fazem.” ([3])
O grande número de pessoas ali presentes representava a violência
humana; para elas não havia sequer um laivo de maldade em suas ações, e se
ofenderiam, certamente, se fossem acusadas de perversas. Jesus, no entanto, as
entendia em sua infância espiritual.
Todos nós, na atualidade, preocupados em saber como lidar com a
violência que explode de tempos em tempos no seio da sociedade terrena, devemos
sempre fazer uma busca interior para compreender integralmente o significado
majestoso dessa atitude de entendimento, perdão e amor que Jesus Cristo legou
para toda a humanidade.
[1] Questão 827 – A obrigação de respeitar os direitos alheios tira ao homem o de
pertencer-se a si mesmo?
“De modo algum, porquanto este é um direito que lhe vem da Natureza.”
[2] Questão 754 – A crueldade não derivará da carência de senso moral?
“Dize – da falta de desenvolvimento do senso moral;
não digas da carência, porquanto o senso moral existe, como princípio, em todos
os homens. É esse senso moral que dos seres cruéis fará mais tarde seres bons e
humanos. Ele, pois, existe no selvagem, mas como o princípio do perfume no
gérmen da flor que ainda não desabrochou.”
Nota – Em estado rudimentar ou latente, todas as faculdades existem no homem.
Desenvolvem-se, conforme lhes sejam mais ou menos favoráveis as circunstâncias.
O desenvolvimento excessivo de umas detém ou neutraliza o das outras. A
sobreexcitação dos instintos materiais abafa, por assim dizer, o senso moral,
como o desenvolvimento do senso moral enfraquece pouco a pouco as faculdades
puramente animais.
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