A despeito de ser
praticada desde a mais remota antigüidade, a cremação (incineração de um
cadáver até reduzi-lo a cinzas) é assunto controverso na opinião da sociedade
contemporânea ocidental. Em eras recuadas, a prática da cremação provinha de
duas razões diferentes: a necessidade de trazer de volta os guerreiros mortos,
para receberem sepultura em sua pátria, como sói ocorrer entre os gregos; ou de
fundamentos religiosos, como entre os nórdicos, que criam assim libertar o
Espírito de seu arcabouço físico e evitar que o desencarnado pudesse causar
danos aos encarnados.
Em Roma, quiçá,
devido ao ritual adotado para queimar os corpos dos soldados mortos, a cremação
se transformou em símbolo de prestígio social, de tal forma que a construção de
columbários([1]) tornou-se negócio rentável. De longa data, os indianos e
outros povos reencarnacionistas sabem que o corpo físico, uma vez extinto, não
mais pode ser habitado por um Espírito, pois isso contraria a Lei Natural;
portanto, o cadáver poderá ser cremado, transformado em cinzas, sem qualquer
processo traumático.
As obras da
codificação espírita nada dizem a respeito da cremação. Por isso, cremos que o
problema da incineração do corpo merece mais demorado estudo entre nós. Até
porque, se para uns o processo crematório não repercute no Espírito, para
muitos outros, por trás de um defunto, muitas vezes, esconde-se a alma inquieta
e sofrida, sob estranhas indagações, na vigília torturada ou no sono repleto de
angústia. Para semelhantes viajores da grande jornada, a cremação imediata dos
restos mortais será pesadelo terrível e doloroso.
Existem correntes
ideológicas avessas à cremação, quase sempre embaladas por motivo de ordem
médico-legal (nos casos estabelecidos em lei, quando envolva morte violenta,
por interesse público); ou movida por razão de ordem afetiva (porque os
familiares acham uma violência a incineração do corpo e querem preservar os
restos mortais para culto ao morto); ou, ainda impulsionada pela lógica de
ordem religiosa (porque muitas pessoas ainda acreditam na ressurreição do corpo
etc) principalmente, porque a Igreja de Roma era contra o ato e até negava o
sacramento às pessoas cremadas. Poderíamos, ainda, acrescentar mais uma objeção
– talvez a mais séria: o desconhecimento das coisas do Espírito, que persiste,
em grande parte, por medo infundido, preconceito arraigado e falta de
informação.([2])
Além disso, a
questão que envolve a cremação tem implicações sociológicas, jurídicas,
psicológicas, éticas e religiosas. Até porque, o tema diz respeito a todas as
pessoas (lembremos que todos nós, ante a fatalidade biológica, iremos
desencarnar). De acordo com tese de pesquisa sobre o tema, a cada 70
anos o planeta terá o número de enterrados na mesma quantidade de encarnados
atuais, ou seja: daqui a sete décadas terá 6 bilhões de cadáveres sepultados.
Enquanto os
profitentes do enterro tradicional (inumação) o defendem por aguardarem, o
juízo final e a ressurreição do corpo físico, os que defendem a cremação,
afirmam que o enterramento tem conseqüências sanitárias e econômicas, e nesse
raciocínio explicam que os cemitérios estariam causando sérios danos ao meio
ambiente e à qualidade de vida da população em geral. Laudos técnicos atestam
que cemitérios contaminam a água potável que passa por eles e conduz sério
risco de saúde humana às residências das proximidades, além das águas de
nascentes podem também contaminar quem reside longe dos cemitérios.
O planeta tem seus
limites espaciais o que equivale dizer que bilhões e bilhões de corpos enterrados
vão encharcar o solo, invadir as águas com o necrochorume (líquido formado a
partir da decomposição dos corpos que atacam a natureza, as quais provocariam
doenças), disseminando doenças e outros riscos sobre os quais sanitaristas e
pesquisadores têm se preocupado. Por outro lado, o uso da cremação diminuiria
os encargos básicos econômicos, como por exemplo: adquirir terreno para
construir jazigo; a manutenção das tumbas; nas grandes capitais falta de espaço
para construir cemitérios etc. Pelo menos em ralação ao nosso País fiquemos,
por enquanto, sossegados, pois, como lembra Chico Xavier“ ainda existe bastante
solo no Brasil e admitimos, por isso, que não necessitamos copiar
apressadamente costumes em pleno desacordo com a nossa feição espiritual.([3])
Sob o enfoque
espiritual o assunto é mais complexo quando consideramos que muitas vezes “o
Espírito não compreende a sua situação; não acredita estar morto, sente-se
vivo. Esse estado perdura por todo o tempo enquanto existir um liame entre o
corpo e o perispírito. ([4]) O perispírito, desligado do corpo, prova a
sensação; mas como esta não lhe chega através de um canal limitado, torna-se
generalizado. Poderíamos dizer que as vibrações moleculares se fazem sentir em
todo o seu ser, chegando assim ao seu sensorium commune ([5]), que é o próprio
Espírito, mas de uma forma diversa.
Ressalta Kardec,
“Nos primeiros momentos após a morte, a visão do Espírito é sempre turva e
obscura, esclarecendo-se à medida que ele se liberta e podendo adquirir a mesma
clareza que teve quando em vida, além da possibilidade de penetrar nos corpos
opacos”.[6] Dessa forma, o homem que tivesse vivido sempre sobriamente se
pouparia de muitas tribulações e menos sentirá as sensações penosas. Portanto,
para ele, que vive na Terra tão somente para o cultivo da prática do bem, nas
suas variadas formas e dentro das mais diversas crenças, a desencarnação não
significa perturbações em face de sua consciência elevada e do coração amante
da verdade e do amor.
Ao ser indagado se
o recém-desencarnado pode sofrer com a incineração dos despojos cadavéricos,
Emmanuel respondeu: “Na cremação, faz-se mister exercer a caridade com os
cadáveres, procrastinando por mais horas o ato de destruição das vísceras
materiais, pois, de certo modo, existem sempre muitos ecos de sensibilidade
entre o Espírito desencarnado e o corpo onde se extinguiu o ‘tônus vital’, nas
primeiras horas seqüentes ao desenlace, em vista dos fluidos orgânicos que
ainda solicitam a alma para as sensações da existência material”.([7])
Chico Xavier, ao
ser questionado no programa “Pinga Fogo”, da extinta TV Tupi, de São Paulo,
pelo jornalista Almir Guimarães, quanto à cremação de corpos que seria
implantada no Brasil, à época, explicou: “Já ouvimos Emmanuel a esse respeito,
e ele diz que a cremação é legítima para todos aqueles que a desejem, desde que
haja um período de, pelo menos, 72 horas de expectação para a ocorrência em
qualquer forno crematório, o que poderá se verificar com o depósito de despojos
humanos em ambiente frio” (.[8]) (grifamos) porém, Richard Simonetti, em seu
livro “Quem tem Medo da Morte” lamenta que “nos fornos crematórios de São
Paulo, espera-se o prazo legal de 24 horas, inobstante o regulamento permitir
que o cadáver permaneça na câmara frigorífica pelo tempo que a família
desejar”.([9]) Nesse caso o prazo poderia ser maior.
O Espiritismo não
recomenda nem condena a cremação. Mas, faz-se necessário exercer a piedade com
os cadáveres, protelando por mais tempo a incineração das vísceras
materiais([10]) pois, existem sempre muitas repercussões de sensibilidade entre
o Espírito desencarnado e o corpo onde se esvaiu o "fluido vital",
nas primeiras horas seqüentes ao desenlace, em vista dos fluidos orgânicos que
ainda solicitam a alma para as sensações da existência material. A impressão da
desencarnação é percebida, havendo possibilidades de surgir traumas psíquicos.
Destarte, recomenda-se aos adeptos da Doutrina Espírita que desejam optar pelo
processo crematório prolongar a operação por um prazo mínimo de 72 horas após o
desenlace.
Jorge Hessen
FONTES DE
REFERÊNCIAS:
([1]) edifício com
nichos para as urnas funerárias
([2]) A Igreja
romana, por ato do Santo Ofício, desde 1964, resolveu aceitar a cremação,
passando a realizar os sacramentos aos cremados, permitindo as exéquias
eclesiásticas. Aliás, em nota de rodapé de seu “Tratado” (vol. II. P. 534), o
professor Justino Adriano registra o seguinte: “Jésus Hortal, comentando o novo
Código de Direito Canônico diz que a disciplina da Igreja ‘sobre a cremação de
cadáveres, a que, por razões históricas, era totalmente contrária, foi
modificada pela Instrução da Sagrada Congregação do Santo Ofício, de 5 de julho
de 1963 (AAS 56, 1964, p. 882-3). Com as modificações introduzidas pelo novo
Ritual de Exéquias, é possível realizar os ritos exequiais inclusive no próprio
crematório, evitando, porém, o escândalo ou o perigo de indiferentismo
religioso.
([3]) Xavier,
Francisco Cândido. Escultores de Almas, SP: edição CEU, 1987.
([4]) Ensaio
teórico sobre a sensação nos espíritos (cap. VI item IV, questão 257 Livro dos
Espíritos).
([5]) Sensorium
commune: expressão latina, significando a sede das sensações, da sensibilidade.
(N. do E.).
([6]) Ensaio
teórico sobre a sensação nos espíritos (cap. VI, item IV, questão 257 Livro dos
Espíritos)
([7]) Xavier,
Francisco Cândido. O Consolador, ditado pelo Espírito Emmanuel, RJ: Ed. FEB 11
ª edição, 1985, pg 95.
([8]) As duas
entrevistas históricas realizadas ao saudoso Francisco Cândido Xavier na
extinta TV Tupi/SP canal 4, em 1971 e 1972, respectivamente, enfaixadas nos
livros Pinga Fogo com Chico Xavier (Editora Edicel) e Plantão de Respostas -
Pinga Fogo II (Ed. CEU),
([9]) Simonetti,
Richard.Quem tem Medo da Morte, SP: editora CEAC, 1987.
([10]) Depoimento
de Chico Xavier in Revista de Espiritismo nº. 33 (FEP) Out/dez 1996.
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